quarta-feira, 4 de março de 2015

ECONOMIA BRASILEIRA - OS CICLOS ECONÔMICOS


BRASIL - A COLONIA AGRÁRIO-EXPORTADORA

Desde o século XVI, a Península Ibérica despontava como um dos agentes mais dinâmicos do capitalismo comercial. A colônia Brasil, domínio português inserido na empresa mercantil, colonial e escravocrata que caracterizou a expansão ultramarina, figurava como uma das peças centrais do intrincado mosaico criado pelo périplo dos portugueses. Várias Fontes nos ajudam a desvendar essa rica história, na qual a economia ocupa lugar nobre. A acumulação primitiva gerada nas colônias determinou um dos veios mais significativos da acumulação geral do capitalismo. O Brasil participava desse processo como pólo exportador de riquezas para todo o continente europeu, por intermédio de sua Metrópole. Essa marca na formação econômica brasileira viria a constituir a matriz da estrutura colonial do país, que perdurou mesmo após a emancipação política para a forma estado-nação ocorrida no século XIX. Ilustração: “Escravos negros vindos da África” — rugendas — Biblioteca municipal de são Paulo.

AS VIAS DE CONSTITUIÇÃO DO CAPITALISMO

Há três casos particulares de construção do modo de produção capitalista: o caminho clássico, o prussiano e o colonial, que envolvem, nos planos teórico e prático, questões que devem ser respondidas de acordo com as possibilidades reais de cada caso. As mudanças possíveis em cada uma das vias são dadas no itinerário da inserção de cada região no capitalismo mundial. Os países líderes do capitalismo construíram seu desenvolvimento pela via clássica — forma sustentada de realizar a industrialização beneficiando-se dos ganhos da era colonial. Nos séculos XVIII e seguintes, ocorreram transformações político-econômicas a partir das revoluções democrático burguesas. A via prussiana foi seguida pelos países de industrialização retardatária, no século XIX. Marcados pela ausência de processos democráticos de emancipação, esses países conquistaram, no entanto, sua autonomia econômica. Já os países de via colonial somavam ao atraso democrático o econômico. Vale lembrar que existem algumas semelhanças entre o capitalismo de via prussiana e o de via colonial que os afastam da via clássica, colocando-os sob o mesmo manto das formas não clássicas de transição para o capitalismo. Porém, apesar das semelhanças (como a ausência de revoluções democrático-burguesas ou a existência de grandes propriedades de terra), há também diferenças substantivas entre as duas formas: enquanto a via prussiana representou uma passagem do feudalismo para o capitalismo, a via colonial não o fez, pois nasceu inserida no sistema já dominado pelo capital2. Toca-se, portanto, na questão central da forma de propriedade fundiária implementada nas colônias, o latifúndio. Além disso, a forma colonial de construção capitalista criou uma burguesia sem condições de obter autonomia política para seus países e incapaz de contribuir para que eles escapassem dos marcos da dependência colonial, ou seja, da subordinação aos pólos dinâmicos das economias centrais. Em outras palavras, a burguesia dos países de via colonial não realizou nem suas tarefas econômicas, nem as políticas, diferentemente da prussiana, que deixou apenas de realizar suas tarefas políticas.

OBJETIVAÇÃO DA LÓGICA DO CAPITAL E SUA EXPANSÃO

Situada a importância do contexto histórico para entendermos as relações brasileiras com as demais regiões do globo no momento atual, passemos à análise da economia colonial brasileira. Os textos clássicos discutem o tema da ocupação territorial durante a colonização da América com base na divisão entre colônias de povoamento e de exploração. As colônias de povoamento dizem respeito ao estabelecimento definitivo de europeus no Novo Mundo; caracteriza-se, como o próprio nome indica, pelo povoamento, pela busca de um novo lar, por pessoas que procuravam afastar-se de conflitos internos da Europa. No século XI, o continente europeu desenvolvia se comercialmente, tendo alcançado notável situação socioeconômica no século XV, principalmente na Inglaterra. Ocorriam, no entanto, simultaneamente, lutas político-religiosas e transformações econômicas consideráveis, particularmente o fenômeno dos cercamentos. Durante dois séculos, grandes contingentes populacionais migraram para regiões de clima similar ao de seu local de origem, concentrando-se, prioritariamente, na zona temperada. As colônias de exploração centravam-se na produção de gêneros que interessassem ao mercado internacional. A diversidade de condições naturais, em comparação às européias, propiciava a obtenção de gêneros diferentes e atrativos, considerados artigos de luxo, como o açúcar, chamado, então, de “ouro branco”. Tais produtos ofereciam altas taxas de retorno para quem neles investisse. Atraídos por esses estímulos, que eram diferentes daqueles dos colonos da zona temperada, esses ocupantes buscavam enriquecer, para depois usufruir, na Metrópole, a sua nova condição. Seus interesses estavam voltados para o usufruto das vantagens potenciais, porém o esforço físico em ambiente tão inóspito deveria ficar a cargo de outros. Os colonos eram empreendedores, mas raramente trabalhadores propriamente ditos. O sentido último das ações dos donos das novas terras era o comércio, pois, com sua realização, obtinha-se o lucro. Sendo assim, como a princípio as novas descobertas não contemplaram nenhum bem comercializável, a idéia de povoar as terras brasileiras não surgiu de imediato. Entretanto, outras circunstâncias, advindas da disputa de novos aventureiros de além-mar, colocaram a necessidade da ocupação efetiva do solo e a construção de laços para além do habitual estabelecimento de feitorias — forma que assumiram as primeiras possessões portuguesas na África. Foi, portanto, por intermédio das colônias de exploração que o capital comercial se objetivou no Brasil. Inicialmente, o problema a ser resolvido dizia respeito à determinação da natureza dos gêneros que poderiam ser aproveitados no novo território. De imediato, a solução vislumbrada recaiu sobre os produtos naturais, como madeiras, destinadas à construção ou à obtenção de tinturas, cujo exemplo clássico é o pau-brasil. Posteriormente, o extrativismo viria a ser substituído pela agricultura. Sua exploração seria feita em grande escala, gerando unidades monocultoras com elevado número de trabalhadores. A necessidade de mão-de-obra abundante conheceu sua solução definitiva na escravidão africana — o tráfico negreiro viria a ser a solução encontrada dentro das regras da economia política praticada pelo mercantilismo, indo ao encontro das necessidades da acumulação primitiva, que conheceu na empresa mercantil, colonial e escravocrata um dos momentos da construção do modo de produção capitalista.

ASCENSÃO DA BURGUESIA E O PACTO COLONIAL

Inicialmente, durante meio século, o descobrimento das terras nativas pareceu ser um episódio secundário para os portugueses. Enquanto os espanhóis colheram imediatamente os frutos auríferos da conquista — bastava estender a mão e alcançá-los —, os portugueses não tiveram a mesma sorte. Por isso, os principais objetivos da empreitada lusa foram comprometidos: primeiro, não haviam encontrado a almejada passagem para as ricas Índias, centro das especiarias, alvo maior das navegações. Segundo, não desfrutavam as vantagens extrativas de que gozavam os espanhóis. A notícia da existência de riquezas metálicas no Novo Mundo, contudo, espalhava-se pela Europa e fazia aumentar a cobiça em relação ao outro lado do Atlântico. As colônias ibéricas tornavam-se alvos de possíveis invasões européias. Diante de tal quadro, a ocupação efetiva revelava-se prioritária, pois, antes de qualquer outra providência maior, era necessário garantir a posse do território colonial português para além dos próprios interesses mercantis imediatos. Sendo assim, a gênese da nossa civilização ocorreu por pressões políticas das lutas no continente europeu. Os rivais europeus entendiam que os ibéricos poderiam desfrutar somente dos territórios que realmente ocupavam. E não foram poucas as vezes que esse reconhecimento caiu por terra, nas várias invasões ocorridas. Por todos esses motivos, a ocupação tinha de ser realizada, concorrendo com os recursos escassos antes destinados, prioritariamente, ao Oriente. Coube à alta administração lusa encontrar, de forma criativa, os meios produtivos adequados para maximizar as fontes de recursos. Reiteradamente, os diferentes analistas da economia política do mercantilismo sustentam a importância cabal do comércio na transição do feudalismo para o capitalismo e, conseqüentemente, o papel das navegações e dos descobrimentos na aceleração da dinâmica mercantil. Sem dúvida, as trocas mereciam papel de destaque, porém o desenho estaria incompleto se não adicionássemos fatores internos e externos à economia européia que facilitaram a realização dos grandes empreendimentos capitalistas. Como fator externo, deve-se destacar a influência dos árabes, que introduziram novos hábitos, técnicas e conhecimentos gerais no território europeu. Como fatores internos, houve o crescimento da produtividade agrícola e os avanços tecnológicos nas manufaturas, criando, assim, excedentes de alimentos e produtos manufaturados que podiam ser exportados com atrativas taxas de lucro. As feiras (núcleos das primeiras cidades modernas) e as Cruzadas também contribuíram, respectivamente, de forma local e internacional, para desenvolver o sistema econômico nascente. Essas condições estimulavam o comércio de longa distância. O incremento produtivo verificado nas atividades primárias e secundárias da economia, criando uma nova agricultura de escala diferenciada e impulsionando a manufatura, tornou-se pressuposto da expansão ultramarina e da colonização das novas terras. Essa nova realidade fez surgir novos grupos sociais, que se fortaleceram e conheceram sua ascensão política devido à força econômica e financeira das atividades mercantis. Surgiam as grandes Companhias de Comércio, organizadas em monopólios e ligadas ao aparelho de Estado, que estava passando por transição, pois era disputado por grupos de interesses antagônicos: clero, nobreza e a burguesia nascente. Ao mesmo tempo que a nobreza e a Igreja detinham a hegemonia política, dividiam com a burguesia uma legislação que se coadunava com as necessidades das novas atividades econômicas — o comércio e a manufatura. A burguesia se apresentava como contrapeso à monarquia feudal, jogando hábil xadrez na conquista de espaços políticos correspondentes a cada avanço econômico. Classe oprimida pelo despotismo medieval, avançava paulatinamente das comunas urbanas aos governos recém-unificados. A burguesia, constituída nos marcos do capitalismo, viu finalmente seus anseios de classe social serem traduzidos pela economia política do mercantilismo, por meio de uma legislação que era o reflexo dessa política: o Estado absolutista. Ilustração: Típica paisagem do Porto de Dover, Inglaterra na época mercantilista.

PACTO COLONIAL

O pacto colonial foi um dos elementos básicos constituintes da política econômica mercantilista. Consistia basicamente no exclusivismo comercial da Metrópole em relação às suas colônias, subordinando-as por meio de um conjunto de medidas econômicas e políticas. Os representantes locais das nações europeias controlavam as relações comerciais e defendiam os interesses da Coroa e das Companhias de Comércio, organismos de capital misto ou estatal.

Após o período em que prevaleceu a busca por metais preciosos — ou seja, a demanda por maximizar ouro e prata circunscritos às fronteiras nacionais —, cresceu o desejo pelas garantias de sempre obter saldo favorável na balança comercial. Dessa maneira, as exportações de bens foram incentivadas e as importações foram inibidas. Para tanto, os monopólios agiram com firmeza, dado que a regulamentação existente fortalecia essa política econômica, alimentando o pacto colonial nas colônias. Era uma lógica carregada de contradições, pois as medidas beneficiavam alguns setores do capital comercial, prejudicando outros. Essa marca da concorrência capitalista, já presente em germe no nascedouro do sistema, determinaria a política de alianças do poder real com grupos comerciais visando um retorno maior de seus próprios investimentos. Futuramente, na era industrial, a classe comerciante teria de romper todos esses laços que haviam garantido sua ascensão, pois a senda que a fortificara tornar-se-ia uma camisa-de-força. Em razão de seu poder econômico financeiro, a burguesia suportaria essa transição para dar o xeque-mate posteriormente, a partir das revoluções democrático-burguesas da via clássica e das “reformas pelo alto” da via prussiana.

A MARCA DA COLONIZAÇÃO DE EXPLORAÇÃO

Coube ao colonizador sistematizar o pacto colonial nos moldes dos interesses europeus, criando, no solo nativo, alternativas que permitissem auferir o lucro almejado e aproveitar as potencialidades da colônia, transformando-a em produtora efetiva de riquezas. As soluções encontradas — a princípio o extrativismo e mais tarde a plantation de cana-de-açúcar, seguidos da mineração, do renascimento agrícola e da cafeicultura — inscreveram a economia colonial na história metropolitana. As Terras de Vera Cruz consubstanciaram-se em uma inesgotável fonte de recursos, responsável junto à economia do Velho Mundo por um dos veios mais promissores da construção do capitalismo, sobretudo o inglês. A maneira encontrada pelos colonizadores para ocupar a colônia foi a exploração agrícola, superando a mera atividade extrativa realizada segundo os moldes do Oriente. A empresa foi ideada levando em conta todas as dificuldades: era preciso encontrar um produto favorável às novas condições existentes em terras virgens, sem contingente trabalhista respeitável e que gerasse altas taxas de retorno aos seus investidores. Para tal empreitada, a experiência dos portugueses desempenhou papel relevante, pois já praticavam a plantation açucareira nas ilhas do Atlântico. Por isso, já dispunham de conhecimento técnico e de uma indústria fornecedora da infra-estrutura necessária.Com produção em escala, as mercadorias portuguesas conseguiam concorrer com as italianas, a preços baixos, difundindo o hábito de consumo do açúcar. Sem dúvida, o fornecimento do açúcar brasileiro para o mercado europeu tornou-se página importante da era colonial, transformando essa especiaria em um bem de consumo tão importante que passou a interferir até mesmo nos costumes da época. Colaborando para a edificação dessa atividade com sabores lucrativos, contou-se com o capital holandês, uma vez que parte significativa dos investimentos proveio dos Países Baixos. Os batavos integraram as várias etapas, financiaram o comércio e a refinação e participaram da importação de mão-de-obra africana. Vislumbrada a viabilidade da nova empresa, tornou-se mais fácil atrair a atenção dos empreendedores. Desde o início, o problema maior, sem sombra de dúvida, havia sido o suprimento de mão-de-obra; sem esse efetivo, pouco teriam valido a experiência lusa e o capital neerlandês. Como sabemos, a mão-de-obra nativa brasileira, apesar de diversas tentativas, não se apresentou como solução definitiva da questão. A Europa não tinha condições de sofrer grandes sangrias populacionais, principalmente para cumprir esse papel, como vimos nas páginas precedentes. Somente se a paga fosse muito boa, o colono europeu se disporia a trabalhar nos trópicos. Não era o caso, pois a própria acumulação estaria comprometida se um dos fatores essenciais da produção, a força de trabalho, exigisse remuneração elevada. Mesmo a possibilidade de distribuição de terras, como ocorreu no norte dos Estados Unidos, não se mostrava viável. As populações destinadas à zona temperada davam conta dos sacrifícios de receber lotes que careciam de total investimento para dar algum retorno. A união de todos os elementos descritos — técnica de produção, mão-deobra, investimentos, mercado consumidor —, somada à necessidade da ocupação definitiva, tornou o empreendimento um sucesso. Aliados à lógica do capital comercial, foram a marca da colonização, gerando vantagens comparativas que determinaram a opção de ocupar o Brasil e romper a linha do Tratado de Tordesilhas.

A QUESTÃO DA MÃO-DE-OBRA

A acumulação capitalista está centrada no binômio propriedade privada e trabalho. A natureza é a fonte potencial de todos os valores de uso, e o trabalho — a mediação de sua apropriação — é gerador da sociedade. A economia política clássica, desde a sua edificação, preocupou-se em teorizar como essa dinâmica, combinada de forma eficiente, poderia gerar lucros. Na Europa, berço do capitalismo, esses elementos uniram-se por meio de variados desenhos, desde a manufatura até o sistema fabril. A forma “gremial” foi o germe da futura fábrica. O mestre artesão era o proprietário da oficina, das ferramentas e das matérias-primas (que, em alguns casos, eram recebidas no ato da encomenda) e trabalhava com seus jornaleiros. Estes, em troca de aprendizado, moradia e alimentação, ajudavam a fabricar as mercadorias cujo destino era o mercado. As indústrias têxteis desenvolveram-se a partir desse sistema, criando paulatinamente um controle autônomo da produção. Com o crescimento da economia e o desenvolvimento urbano, deu-se a separação crescente do trabalhador de seus meios de produção — terra e ferramentas —, restando-lhe a venda de seu potencial de trabalho como única fonte de subsistência. Os cercamentos constituem um dos elementos históricos mais importantes no processo de acumulação primitiva. Entretanto, o trabalho assalariado — forma clássica do sistema capitalista, pois tornou-se dominante e estendeu-se em vários ramos — não foi a única forma de trabalho presente na história do capitalismo. A escravidão moderna participou ativamente do crescimento das riquezas geradas no período mercantil, seja como pólo acumulativo no tráfico negreiro e no escambo, seja como importante fonte de lucros nas plantations. No caso brasileiro, houve várias tentativas de aproveitamento do gentio. Inicialmente, a mão-de-obra indígena foi utilizada na extração do pau-brasil e depois, timidamente, na lavoura da cana-de-açúcar. Nesta última atividade, os esforços necessários para a compulsão não compensavam a empreitada. Com exceção dos jesuítas, que lograram um real aproveitamento desse contingente produtor local nas suas missões, boa parte dos demais colonizadores resolveu definitivamente suas necessidades de fator trabalho com o uso dos escravos africanos: “(É) A partir do alvará de 29 de março de 1559, dirigido ao capitão da Ilha de São Tomé e ordenando que, à vista de certidão passada pelo governador do Brasil, cada senhor de engenho pudesse resgatar até 120 escravos do Congo, pagando apenas um terço de direitos, que começa a ser menor a penúria de braços africanos na colônia”. No início, registrou-se escassez no fornecimento da mão-de-obra escrava. Somente a partir do final do século XVII, os traficantes — inicialmente portugueses, substituídos por franceses e depois ingleses — atenderiam com maior regularidade à demanda brasileira de escravos. Na análise dos ciclos econômicos do próximo capítulo, demonstraremos a relação entre a acumulação predatória realizada na era colonial e o escravismo, forma de superação dos problemas encontrados pelo colono em relação à força de trabalho.

O CICLO DA CANA-DE-AÇÚCAR

Foram imensas as dificuldades para a implantação da agricultura e de atividades extrativas no período do Brasil Colônia. Para atrair o colono, que deveria superar as dificuldades da zona tropical, era necessário oferecer-lhe grandes propriedades de terra, como recompensa pelo grande sacrifício. Convencidos da necessidade de ocupação das terras brasileiras, os portugueses dividiram-na em lotes, denominados capitanias hereditárias, e deram início à produção agrícola na forma de plantation, como vimos nas páginas precedentes. O Brasil conheceu, então, certo florescimento econômico, mas que não se deu de maneira regular e linear, e sim sob a forma de ciclos econômicos. A teoria econômica afirma que os ciclos são flutuações nas atividades econômicas da era industrial, ou seja, alternância de períodos de expansão e de contração da economia. Tendencialmente, as crises cíclicas ocorrem em intervalos periódicos relativamente constantes. Há diversas explicações para o fenômeno e inúmeras propostas para o enfrentamento da questão. Na história econômica brasileira, o conceito de ciclos econômicos é utilizado para identificar os movimentos de crescimento e declínio das atividades extrativas (ciclo do pau-brasil), da produção agrícola (borracha, cana-de-açúcar, cacau, café) e mineradora (ouro).
Ilustração: O Engenho, Rugendas

A PRODUÇÃO AÇUCAREIRA

O processo de mudança da mão-de-obra nativa para a negra ocorreu durante a era colonial. Foi mais rápido na região Nordeste, principalmente na Bahia e em Pernambuco, dois grandes núcleos iniciais da produção açucareira, que demandavam a força de trabalho proveniente da África. Em um segundo estágio viriam os vizinhos do Rio de Janeiro e São Vicente. Ao redor de Pernambuco, a mudança da mão-de-obra estendeu-se tanto nos eixos norte-sul como para o interior. Podemos detectar sua expansão até a fronteira com o Rio Grande do Norte. No mais, só surgiriam pequenos núcleos de menor importância no Maranhão e na foz do Rio Amazonas. No resto do país, a implantação do sistema foi mais lenta. Seu custo fora das zonas nobres do eixo econômico era alto, pois as condições de viagem e os maus tratos impostos aos escravos reduziam seus quadros pela metade, aumentando seu valor. Resolvido o fator trabalho, a monocultura pôde iniciar-se; eram extensas unidades com grande número de braços tocando a produção, sob o olhar ameaçador de um feitor, homem de confiança do proprietário. O engenho, cuja função era produzir açúcar, constituía o centro dessas fazendas. Lá, manipulava se a cana e criava-se o produto final. Com o passar do tempo, o conceito de engenho se estendeu a todas as terras e culturas, tornando-se equivalente a propriedade canavieira. As extensas terras eram ocupadas principalmente com as grandes plantações, mas também com a agricultura de subsistência e pastagens dos animais. Desde a sua implantação, no século XVI, até quase o final do século XVIII, a produção açucareira foi o eixo da economia colonial. O açúcar constituía um produto nobre de exportação, por seu destaque no plano internacional. Até o século XVII, a produção cabocla era líder no mercado mundial, só vindo a perder esse lugar quando entraram no cenário americano as produções concorrentes, realizadas na América Central e nas Antilhas. Destarte, os produtores locais tiveram de começar a investir em outros produtos. O tabaco baiano não só teve boa receptividade na Europa como cumpria papel similar à aguardente no escambo feito na costa africana. Sintomaticamente, sua decadência se deu à época da proibição do tráfico negreiro, no século XIX. Ainda durante o ciclo açucareiro, Lisboa enfrentaria dificuldades advindas das invasões holandesas na região Nordeste. Com o domínio castelhano sobre a Coroa lusa, durante o século XVII, unindo a Península Ibérica sob um único governo, os neerlandeses tornaram-se inimigos de Portugal e, conseqüentemente, do Brasil. A manutenção dos interesses portugueses na região Nordeste tornou-se mais difícil, sendo garantida na ponta das baionetas. Outro dado que nos aponta a relevância do período em pauta é o aumento territorial brasileiro. A defesa do monopólio açucareiro levou ao alargamento das nossas fronteiras sob o domínio ibérico, com o estímulo ao povoamento de outras faixas de terras, atingindo a região amazônica.

O CICLO DO OURO

O ouro brasileiro provocaria grandes mudanças, que levariam ao esgotamento da primeira fase do açúcar. Contudo, o metal não superaria, em cifras de produção global, o montante de recursos que o açúcar forneceu ao longo da história da colônia. Quando surgiu no palco nacional, porém, fez grande alarde, atraindo todas as atenções locais e internacionais. As demais atividades declinaram diante da importância desse metal. O ouro atraiu para Minas Gerais, junto com as classes dominantes, um contigente populacional carregado pela ilusão do enriquecimento rápido. É verdade que se buscava ouro desde o início da empreitada mercantil. A descoberta imediata desse metal pelos espanhóis sempre havia alimentado a fantasia lusa de que todo o território americano estivesse repleto de jazidas auríferas, e essa esperança permaneceu viva durante dois séculos de exploração. Comprovam-no as várias expedições que, desde o início, tinham se embrenhado mata adentro. Muitos membros dessas empreitadas pagaram com a própria vida a ousadia, pois quase todas se perderam, vítimas dos índios ou da própria natureza. Essas expedições assumiam diversas formas, dentre as quais destacaram-se as bandeiras paulistas, que tinham como objetivo a captura de índios. Foram esses aventureiros que encontraram o ouro mineiro na região das cidades históricas de Minas Gerais. Começou, então, a corrida ao ouro brasileiro, que, durante um século, ocuparia o centro nervoso da economia. A repercussão da descoberta do metal ocasionou um movimento migratório inédito para o Brasil, alterando o perfil populacional, sobretudo pelo surgimento de uma camada média na escala social. A mineração atraiu colonos de menores posses, devido ao tamanho mais modesto das minas brasileiras em relação às das colônias castelhanas. No que diz respeito à importância dessa migração, Furtado afirma: “Não se conhecem dados precisos sobre o volume da corrente emigratória que, das ilhas do Atlântico e do território português, se formou com direção ao Brasil no decorrer do século XVIII. Sabe-se, porém, que houve alarme em Portugal, e que se chegou a tomar medidas concretas para dificultar o fluxo migratório”. A indústria da mineração consubstanciava-se na exploração das jazidas, a qual se dava, de um lado, nas lavras e, de outro, pelo trabalho dos faiscadores — homens livres e nômades que produziam isoladamente e já faziam parte do cenário europeu. Seu volume tendeu a aumentar na fase de decadência do ouro. A produção maior, no entanto, era obtida nas grandes lavras, que reuniam um número elevado de trabalhadores, a maioria dos quais era escrava. Não se registra a presença do índio. Não se pode ignorar que a produção aurífera conheceu novas modalidades de trabalho escravo em virtude de sua organização geral. Diferentemente do ciclo econômico anterior, alguns escravos gozavam de uma posição diferenciada na economia mineira, com maior mobilidade social. Podiam mesmo chegar a se estabelecer por conta própria, trabalhando por quotas e acumulando o suficiente para adquirir a própria liberdade. Essas diferenças sociais atingiam os homens livres também. No passado, somente os grandes proprietários gozavam do status advindo de sua posição dominante na estratificação social vigente. Em Minas, porém, as possibilidades eram outras e vários empreendedores de menor porte logravam sucesso na nova atividade. Vale lembrar que a atividade aurífera exigia um controle maior por parte dos colonizadores, devido à sua importância como fonte de riqueza. O controle era praticado por meio de atos, regimentos, regulamentos e vigilância local, pelo superintendente da Intendência de Minas, forma de administração especial da Coroa. É dessa época a determinação da quinta parte — o quinto — como taxação sobre o ouro extraído. A Fazenda Real enfrentava muitos contratempos para a fiscalização da cobrança desse imposto. Tratava-se de um tributo alto para os mineradores, que não pouparam criatividade para burlar o fisco e maquiar o montante da produção obtida. Foi uma longa disputa que desembocou na criação das Casas de Fundição. Todo o ouro extraído tinha de passar por esse local para ser fundido e cunhado quando, então, no ato da colocação do selo régio, era recolhido o tributo. Estava terminantemente proibida a circulação de metal que não tivesse sido anteriormente “quintado”. As conseqüências para os infratores eram severas, chegando até o degredo para fora dos domínios luso-africanos. Todas essas medidas foram somadas a outra, mais drástica para os envolvidos no atraente negócio das minas de ouro: a decretação da quota mínima, por volta de 100 arrobas ou 1.500 quilos. Espontaneamente ou de forma compulsória, por meio do derrama, a quantia tinha que ser entregue à fiscalização. Tamanho abuso de Lisboa determinou um clima de revolta, culminando com a Inconfidência Mineira, que, apesar de todos os percalços, conseguiu pôr um fim nesses atos predatórios para a colônia. O século XVIII chegou ao seu final conhecendo a decadência da mineração brasileira. O ouro que ainda era encontrado, geralmente nos leitos e nas margens dos rios, na forma de aluvião, diferentemente daquele extraído de rochas matrizes, era pouco abundante, o que explica seu precoce esgotamento. Somava se a esse fato o baixo nível tecnológico empregado pelo explorador, sem pesquisa ou aprofundamento de seus conhecimentos. A administração colonial, devido a seu caráter exploratório, nunca investira em educação nem na racionalização de processos produtivos, comportamento que teve reflexos na economia local e acelerou a decadência da mineração.

Outra preciosidade explorada à época foram os diamantes. O Brasil tomou o lugar antes ocupado pela Índia como grande produtor de diamantes para, posteriormente, perdê-lo para a África do Sul, onde ocorreriam descobertas de grandes jazidas dessa pedra. Em comparação com o ouro, a produção brasileira de diamantes foi pequena, mas conheceu a mesma lógica exploratória. Nesse caso, a Corte acabou por assumir totalmente a questão, com controle direto sobre o Distrito de Diamantina e demais áreas. A mineração, apesar de relativamente efêmera, ocupou um lugar de destaque na história da colônia. No período de sua vigência, foi o foco das atenções no país e cresceu em detrimento das demais atividades. Houve uma corrida ao ouro de outras regiões do país em direção a Minas Gerais, a qual alterou o quadro populacional interno, promovendo a ocupação do Centro-Oeste e a mudança do eixo econômico (que até então estava localizado nas áreas de produção açucareira). Desenvolveram-se também, na região, a agricultura e a pecuária, como atividades acessórias para a manutenção da produção mineradora. Outra conseqüência foi a transferência da capital, em 1763, da Bahia para o Rio de Janeiro, pois as comunicações entre Minas e a Metrópole seriam estabelecidas com mais facilidade por intermédio do porto carioca.

O RENASCIMENTO AGRÍCOLA

Com o florescimento da mineração, a agricultura atravessou um período de decadência. Fenômeno oposto ocorreria no século XVIII, quando, novamente, a agricultura se tornaria a maior fonte de recursos da colônia. Sob os auspícios das vantagens trazidas pela Revolução Industrial e os progressos obtidos no mundo recém-industrializado, novas oportunidades surgiram no mercado internacional. Em consequência da aliança portuguesa com o governo inglês, que colocava Portugal numa posição privilegiada no emaranhado das guerras européias, o Brasil pôde aproveitar as novas oportunidades emergentes para oferecer, com vantagens, suas mercadorias tropicais nas rotas comerciais e investir em um novo produto: o algodão. Com novas tecnologias desenvolvidas na Revolução Industrial, esse tecido tornou-se a principal matéria-prima da época. Devido ao aumento incessante da produção fabril, o Oriente não conseguiu dar conta da demanda. A América, com suas reservas de terras virgens, foi chamada a fornecer a matéria-prima, e o Brasil passou a ocupar um lugar de destaque naquela nova corrida. O algodão é originariamente americano. As populações nativas, inclusive os indígenas brasileiros, já o conheciam antes dos descobrimentos. Até o último quartel do século XVIII, esse produto era usado para fabricar vestimentas rudes e, ocasionalmente, exportado. Com o surto industrial, passou a ser produzido em todo o país, do Pará ao Paraná, passando por Goiás e chegando até o Rio Grande do Sul. O açúcar acompanharia o algodão no renascimento agrícola da colônia. Após um centenário de decadência, as antigas regiões produtoras renasceram. A região paulista também participou dessa nova fase, começando a demarcar sua futura posição na economia nacional. Outra produção que floresceu nesse ciclo foi a do arroz. Embora secundário em relação ao açúcar, teve certa expressão na pauta de exportações. As principais lavouras estavam localizadas, primeiro, no Maranhão e, depois, no Pará e no Rio de Janeiro. O anil foi uma esperança frustrada. Os americanos se tornaram, no século XVIII, os maiores produtores mundiais, superando a produção indiana, que era a grande fornecedora de então. Esse produto foi cultivado nos Estados Unidos, em São Domingos e também no Brasil, que chegou a exportar cinco mil arrobas pela capitania do Rio de Janeiro. Porém, nesse mesmo século começou a decadência e a liderança comercial voltou a ser exercida pela Índia. Os ingleses, com a perda de suas colônias americanas, voltaram a investir na Ásia, e a cultura de anil brasileira conheceu o declínio. Ainda no século XVIII, o cacau apareceu no cenário baiano e na região paraense. Complementarmente, observou-se no Pará a exportação de produtos florestais, tais como baunilha, cravo e canela, juntamente com as resinas aromáticas, explorando a mão-de-obra indígena, apesar de todas as dificuldades conhecidas. O café, proveniente da Abissínia, passou pela Europa antes de atingir a América e chegou ao Brasil na primeira metade do século XVIII. Adaptando-se perfeitamente ao nosso solo e sendo plantado e consumido como bebida no país, causou grande expansão na economia brasileira depois da Independência. Por ora, é suficiente lembrar que esse produto surgiu, paradoxalmente, como um gênero de menor importância. No início, foi desprezado em favor do açúcar, mas acabaria por figurar praticamente isolado na balança comercial cabocla a partir do Segundo Império. Esse fato deveu-se, em grande parte, à posição adotada pelos Estados Unidos, que, menosprezando os grandes centros, até então os maiores produtores, voltaram os olhos para a produção brasileira. Caio Prado Jr. relata que: “Os Estados Unidos, grandes consumidores de café, voltar-se-ão (…) para os novos produtores (…). Em particular o Brasil, favorecido além do mais, com relação a eles, pela sua posição geográfica. A produção cafeeira encontrará nos Estados Unidos um dos seus principais mercados; em meados do século, quando o café se torna o grande artigo de exportação brasileira, aquele país absorverá mais de 50% dela. E essa porcentagem ainda crescerá com o tempo”. O renascimento agrícola colonial marcou a superação da era da mineração. Definitivamente, a agricultura retomou sua importância e foi reconhecida como a base da economia local. Novamente, o Brasil voltou-se do interior para a costa, cumprindo um papel de colônia de exploração. Esse novo surto não teve uma longa vida no Nordeste, pois, já na segunda metade do século XIX, o Centro-Sul tomaria a liderança, enquanto se assistia ao declínio das regiões Norte e Nordeste e à ascensão do Sul e do Sudeste, na época do Brasil politicamente independente.

O CICLO DO CAFÉ

A lavoura de café do início do século passado não enfrentou nenhuma crise mais séria de escassez de mão-de-obra. O mercado de trabalho para a produção funcionava adequadamente, pois a questão da mão-de-obra fora resolvida a partir da década de 1870, com a abundante imigração européia. Além disso, a terra não constituía obstáculo à expansão da produção do café, já que vastas regiões do Estado de São Paulo encontravam-se desocupadas, podendo vir a ser cultivadas no futuro, ainda mais na presença de uma rede ferroviária que se expandia na medida da necessidade de ocupação das terras novas. Assim sendo, a lavoura do café e, portanto, a produção possuíam amplas condições de crescimento no estado, sem enfrentar obstáculos de monta. Em conseqüência, métodos produtivos rudimentares eram perfeitamente adequados, sem reclamar nenhuma mudança que exigisse absorção de recursos de capital para o prosseguimento dessa empresa, cuja aplicação mais lucrativa encontrava se na esfera comercial. Visto que a formação da lavoura e a produção de café necessitavam de financiamento, coube ao comerciante ocupar o espaço deixado pela inexistência de vínculos diretos entre o fazendeiro e os bancos.
Ilustração: Escravos negros na lavoura de Café, Tarsila do Amaral.

3.1 O COMERCIANTE DE CAFÉ E O CRÉDITO AGRÍCOLA

Durante o longo período do século XIX em que a economia cafeeira se assentou sobre o regime de trabalho escravo (e mesmo nas duas décadas seguintes, ao final da escravidão), o mecanismo de financiamento da produção nas lavouras de café vinculava-se profundamente à comercialização do produto. Nesse sistema, adquiriam um papel central os comerciantes (ou comissários) de café das praças de Santos e do Rio de Janeiro, dos quais dependiam, em grande medida, os fazendeiros de café, para: a) realizar seus lucros, com a venda do produto; e b) obter os recursos financeiros necessários à produção. O que diferenciava um comerciante de café de um comerciante comum, portanto, era o fato de exercer a atividade de financiador da lavoura. Como em qualquer atividade produtiva no sistema capitalista, seria razoável supor que a principal fonte de financiamento de capital residisse nos lucros gerados na própria produção, ou, em outras palavras, no autofinanciamento. Contudo, isso não se deu na lavoura cafeeira até pelo menos a crise de superproducão do final do século XIX e princípio do século XX, em razão das características de exigência de recursos para a formação e operação da lavoura. Os recursos financeiros na lavoura de café são importantes por duas razões. Primeiro, por se tratar de uma cultura permanente que exige um período relativamente longo para sua formação. As variedades de café correntes no começo do século passado produziam seus primeiros frutos somente no quarto ano após o plantio, e mesmo essa colheita inicial era modesta. A lavoura era considerada formada e em plena produção apenas no quinto ou sexto ano de vida. Em conseqüência, os gastos com a formação exigiam uma inversão de recursos cujos primeiros retornos tardariam longo tempo para aparecer. A segunda razão refere-se às elevadas exigências do trato do cafezal. São necessárias diversas carpas durante o ano para conservar a lavoura limpa a fim de preservar a produtividade da planta. É assim evidente que, se o regime de trabalho envolvia remuneração monetária da força de trabalho, a lavoura exigia muito capital de giro para sua operação. Tais observações merecem atenção quando se busca explicar a dependência do fazendeiro de café diante do comerciante, na época. Havia, ainda, outra explicação para essa dependência. A função de comercialização do café era extremamente especializada, pois envolvia o preparo de mistura de diversos tipos de café, uma atenção especial com a bebida e outras características que refletiam as exigências das demandas externas, de diversas procedências. O comércio concentrava-se, inclusive por essas razões, nos portos de Santos e do Rio de Janeiro. Assim sendo, ao fazendeiro não restava senão a entrega de todas essas responsabilidades ao comerciante de sua confiança, criando-se laços comerciais que acabavam por atingir o campo do financiamento da produção. “As relações entre o comerciante e o produtor assentavam principalmente na necessidade de fornecer o primeiro a massa de recursos indispensáveis para o desenvolvimento das operações de cultura a cargo do segundo durante o período da formação dos cafezais e posteriormente na rotação anual das colheitas, com a obrigação taxativa da consignação do produto para a amortização dos adiantamentos e dos ônus que lhes são correlatos.” Um conjunto de circunstâncias a cercar o mecanismo de comercialização e financiamento da lavoura de café, no início do século XX, transparece da leitura do trecho anteriormente citado, escrito em 1923. Em particular, deve ser destacada a ênfase no relacionamento entre o comerciante e o fazendeiro: não se tratava simplesmente de uma intermediação comercial, e sim de uma relação complexa na qual a função financiadora do primeiro adquiria relevo essencial. Cabia ao comerciante a função de prover ao fazendeiro os recursos necessários para a formação da lavoura e para o trato do cafezal e a colheita do café. Em outras palavras, cabia ao comerciante fornecer os recursos para a formação do capital fixo e de giro da produção. Era o comerciante, pois, o “banqueiro” da lavoura. Na ausência de um sistema bancário, público ou privado, ligado diretamente à produção, o comerciante de café assumia o papel fundamental de suprir o crédito necessário. Em contrapartida, exigia reciprocidade do fazendeiro, pois a produção era entregue aos seus cuidados, que consistiam no preparo e na venda do café, com uma comissão que na época era fixada em 3% do valor da venda. O comerciante fornecia o crédito ao fazendeiro; em troca, adquiria um cliente cativo. Não era, contudo, um “cativeiro” tão difícil de suportar. O relacionamento comercial entre a casa comissária e a fazenda principiava pelo fornecimento de crédito ao fazendeiro, tanto para a formação da lavoura quanto para o custeio da fazenda. Os juros cobrados pelo comércio comissário sobre tais adiantamentos variavam entre 9% e 12% ao ano. Ao que tudo indica, ao fazer o repasse do crédito bancário ao fazendeiro, o comissário não auferia lucro. Isto é, a taxa cobrada ao fazendeiro era a mesma cobrada pelo banco à casa comissária. Assim, como o dinheiro fornecido ao fazendeiro tomava a forma de adiantamento para cobrir as despesas ao longo do ano agrícola, também o empréstimo bancário era pouco formalizado: os bancos emprestavam sob crédito pessoal do comissário (firma social ou individual) “a descoberto”, mediante simples comprovação de existência de conta corrente. Mais tarde, exigiam-se letras da terra, depois letras com endosso; raramente eram necessárias outras garantias. Assim sendo, a estrutura do sistema de crédito era informal dos dois lados, tanto do banco ao comissário como deste ao fazendeiro. Durante todo o século XIX, ainda sob o regime de escravidão nas fazendas de café, esse papel de comerciante-banqueiro era o exigido do comissário. O sistema geral de venda de café no Estado de São Paulo, desde os mais remotos tempos a que nos chega a tradição, era, depois de transportado o produto ao porto, consigná-lo a um comerciante; este, por uma comissão sobre o valor da venda, transferia-o a um exportador, o qual, por sua vez, colocava o café no mercado consumidor. O comissário continuou a exercer suas funções até pelo menos os primeiros anos do século XX. Mesmo depois, até a crise de 1929, conservou ainda parte da sua importância na ausência de um sistema bancário ligado à produção: “Era, embora em estado rudimentar, o mesmo comerciante que hoje designamos por comissário, e que, com pequenas variações naturais da evolução dos tempos, perdura até nossos dias, como principal agente de negócios de café, no que toca ao produtor, em nosso porto de exportação”. Ao citar um trabalho de Paulo Porto Alegre, de 1878, Taunay afirmava que “pelos anos em que ele escreveu, não havia ainda casas exportadoras e só comissárias. Eram os comissários, os banqueiros dos lavradores. Concentravam, em seus armazéns, as colheitas que as tropas faziam descer do planalto ao litoral”. E, em seguida, observava que “não havendo crédito agrícola no Brasil, via-se o comissário forçado a servir como banqueiro da lavoura”. O comissário ocupa, pois, um espaço deixado pela inexistência do crédito agrícola no país. Como era possível ao comissário financiar a formação e o custeio das lavouras? Continua Taunay : “Os bancos emprestavam sob o crédito do comissário, de sua firma ou pessoal, sob letras endossadas por outros comerciantes, pois recusavam se, sistematicamente, a aceitar endossos de lavradores, de modo que se criavam interdependências comerciais perigosas e por vezes ruinosas”4. Dessa forma, a função de intermediário financeiro, exercida pelo comissário, equivalia a um tipo de especialização do sistema bancário, já que este último, nas condições vigentes na época, não possuía vínculo financeiro com a produção de café. Por que era possível ao comissário o que era vedado ao fazendeiro? Que características permitiam ao comissário obter crédito com os bancos, enquanto aos fazendeiros o mesmo crédito era negado? Uma razão básica residia no fato de que o crédito, durante todo o século XIX e até 1930, era basicamente constituído de empréstimos pessoais. Em conseqüência, o conhecimento e as relações pessoais assumiam relevância na concessão do financiamento. O comércio comissário situava-se, dessa forma, em posição privilegiada junto aos bancos, enquanto os fazendeiros encontravam enorme dificuldade. As casas comissárias no Estado de São Paulo localizavam-se na praça de Santos, centro do comércio interno e de exportação de café. Por conseguinte, essas casas mantinham um relacionamento constante com os bancos, que, mesmo quando sediados na capital, atuavam diretamente nas atividades comerciais de Santos. Os fazendeiros, ao contrário, tinham pouca oportunidade de manter qualquer relacionamento com os bancos, pois residiam em regiões distantes de Santos e da capital. Evidentemente, isso fazia sentido apenas pelo fato de o sistema bancário ser pouco desenvolvido, contando-se nos dedos o número de agências localizadas fora de São Paulo e Santos. A abertura de agências dos bancos nacionais e do Banco do Brasil no interior de São Paulo, que aproximaria os bancos dos fazendeiros, somente tomaria vulto nos anos 1920. É o que se conclui da passagem a seguir: “(…) em 1918, os bancos nacionais, em São Paulo, dispunham de 11 agências no interior do estado. Em 1924 esse número subiu a 53, para atingir 88 agências em 1927. O Banco do Brasil em 1918 contava 28 agências, das quais quatro ficavam no Estado de São Paulo. Em 1927 o principal estabelecimento bancário brasileiro dispõe de 70 agências, das quais 16 em nosso estado”. Havia ainda outras razões que possibilitavam aos comissários o acesso ao crédito bancário. Entre elas, seguramente, o fato de que não era incomum existirem vínculos pessoais entre os comissários e os bancos. O conselheiro Antonio Prado, por exemplo, além de grande fazendeiro na região de Ribeirão Preto e Sertãozinho (desde o final do século XIX), era proprietário, juntamente com outros membros de sua família, de uma casa comissária em Santos — a Prado & Chaves — e, ao mesmo tempo, era o controlador de um dos mais importantes bancos da época — o Banco do Comércio e Indústria de São Paulo (Comind). A razão principal, contudo, para o acesso dos comissários ao financiamento bancário, bem como para a inexistência de um vínculo efetivo entre os bancos e os fazendeiros no começo do século XX, residia na própria natureza da empresa do café. De um lado, os capitais da época, fossem eles nacionais ou estrangeiros, estavam aplicados basicamente no grande negócio que era o comércio do café. Sendo o produto uma das mercadorias de maior valor no comércio internacional, era na esfera da comercialização que se realizavam os grandes negócios, acumulavam-se fortunas e prosperavam as empresas. Evidentemente, a produção de café proporcionava lucros ao fazendeiro; no entanto, tais lucros eram, seguramente, menores do que aqueles auferidos na sua comercialização, não apenas no âmbito doméstico, mas também, e sobretudo, nas exportações.

ESGOTAMENTO DO SISTEMA DE FINANCIAMENTO DA ECONOMIA CAFEEIRA

Sendo informal, o sistema creditício revelava-se flexível e adequado ao fazendeiro. Se por acaso a colheita fosse pequena, ou se baixassem as cotações do café no mercado internacional e os preços no mercado interno, o pagamento do empréstimo era muitas vezes postergado. As vantagens que um sistema de crédito como esse proporcionava tanto ao comissário quanto ao fazendeiro eram evidentes. A este último, em particular, era altamente favorável: tinha acesso ao crédito de que necessitava a juros razoáveis e ainda contava com flexibilidade em períodos de aperto financeiro. Ao comissário, por sua vez, mesmo não auferindo lucros no repasse, cabia a vantagem de assegurar para si a colheita do fazendeiro, cuja comercialização lhe proporcionava os lucros da sua atividade. O ponto fraco do sistema estava, a par de suas vantagens, precisamente no caráter pessoal do crédito: com a expansão da lavoura e o conseqüente aumento do volume de negócios, as somas emprestadas cresceram e passaram a exigir garantias mais sólidas. Entretanto, mesmo essa debilidade do sistema encontrou solução nos primeiros tempos da grande expansão da lavoura (a partir de meados da década de 1880), pois o aumento do número de casas comissárias fazia com que os riscos maiores se diluíssem. À parte possíveis exageros, as casas comissárias surgiram em grande número, acompanhando a expansão dos negócios. Taunay chega a apontar cerca de duas mil firmas comissárias no Rio de Janeiro. Em entrevista a um jornal do Rio de Janeiro em 1927, um antigo comerciante de café assim descrevia o sistema: “(…) havia até 15 anos passados três classes distintas no comércio de café do Rio: o comissário, o ensacador e o exportador. O comissário recebia o café do interior. Adiantava dinheiro ao fazendeiro, representando em face do produtor, o papel de banqueiro. O fazendeiro, além dos juros, que variavam entre 9 e 12%, pagava ao comissário uma comissão de 3% como, de resto, acontece ainda hoje. O ensacador comprava por conta própria o café aos comissários. Era esse intermediário quem manipulava e classificava os tipos de café. (…) O exportador não fazia, como hoje, a classificação do café para os mercados externos. Ele se limitava a comprá-lo já manipulado do ensacador para a exportação. Ensacador e comissário, via de regra, eram ou brasileiros ou portugueses. O exportador era uma classe na sua quase totalidade constituída do elemento estrangeiro, ingleses principalmente. Não tinham nenhum armazém de depósito. Possuíam apenas escritórios. (…) Atualmente não existe mais a distinção entre ensacador e exportador, há apenas duas classes de intermediários entre o produtor e o mercado exportador, e que são o comissário e o exportador. A existência outrora de uma classe intermediária entre o comissário e o exportador era vantajosa para aquele, pois que o ensacador ajudava o comissário a resistir à desvalorização do produto. O ensacador era um interessado na alta, tanto quanto o comissário. E assim toda vez que o café tendia para baixa, era ele quem, via de regra, ajudava o comissário obter crédito nos bancos, para o café não ir parar a preços não-remuneradores às mãos do exportador”. O autor da entrevista referia-se ao comércio do café no período anterior à República, na praça do Rio de Janeiro. Contudo, adianta que tal sistema prevaleceu até “15 anos passados”, ou seja, até por volta de 1912. Descontando se o papel do ensacador, importante principalmente no Rio de Janeiro do século XIX, em essência era esse também o sistema na praça de Santos, no início do século XX. Muitas são as informações importantes nesse depoimento. A primeira delas é o interesse altista do comissário e o interesse do exportador na baixa do café. Aí residia um ponto de convergência de interesses do comissário e do fazendeiro. Ao comissário, assim como ao fazendeiro, só interessava a alta, pois sua comissão repousava sobre o valor da venda. Ao exportador, ao contrário, era a baixa do preço interno que interessava, pois ganhava na diferença entre esse preço e o de exportação. Nesse sentido, pode-se concluir que a casa comissária era o representante do fazendeiro nas praças de Santos e do Rio de Janeiro. Outra informação importante diz respeito ao controle do comércio exportador. Da mesma forma que no Rio, os maiores exportadores da praça de Santos eram estrangeiros. Do total de sacas exportadas pelo porto de Santos, no período de 1895 a 1907, verifica-se que os dez maiores exportadores foram responsáveis por mais de 70% das exportações. Dentre eles figura apenas uma empresa brasileira, a Prado & Chaves. Mesmo assim, essa firma brasileira foi responsável pelo equivalente a menos de 4% do total exportado no período. O controle das casas exportadoras por firmas estrangeiras, na praça de Santos, era, pois, absoluto. Em conseqüência, uma parcela considerável da renda gerada na economia cafeeira era apropriada por capital estrangeiro e drenada para o exterior. À medida que crescia a área e atuação das casas exportadoras, em detrimento das casas comissárias, maior era a capacidade baixista do exportador e, portanto, maior a importância da renda apropriada e transferida para o estrangeiro. O comércio funcionava de tal modo que à queda dos preços internacionais não se seguia uma correspondente baixa dos preços no varejo. Esse mecanismo funcionou entre 1894-1904, provocando o aumento da margem de comercialização dos intermediários, que passou de 13 centavos por libra-peso em 1892-1895 para 17,4 centavos por libra-peso em 1901. Em outros termos, os exportadores estrangeiros da praça de Santos exerciam um papel de oligopsônio sobre vendedores, enquanto as casas comissárias organizavam-se numa estrutura concorrencial. Decorre desse fato um confronto desigual entre fracos interesses altistas e poderosos interesses baixistas, verificados, sobretudo, em períodos de superprodução, como o que teve lugar no final do século XIX e princípios do século XX. Se de um lado os comissários trabalhavam pela alta das cotações, e assim representavam interesses que eram seus e dos fazendeiros, por outro lado sua atividade incluía práticas que contrariavam interesses dos proprietários de terra, como manipulações com o café adquirido em consignação dos fazendeiros. Quando um tipo de café de qualidade era misturado com outros, de qualidade inferior, alcançavam-se preços mais baixos. Para o comissário, essa prática era interessante, pois assim encontrava colocação para produtos que, de outro modo, não teriam mercado. Isto é, ao comissário interessava vender pelo maior preço, mas vender todo o café de que dispunha em consignação, o que acarretava perdas para o fazendeiro que enviava um café fino a Santos. Outras práticas também prejudicavam o fazendeiro. O café vendido pelo comissário ao exportador era acompanhado de uma simples conta de venda do comissário ao fazendeiro, relatando as condições da venda e o crédito que o fazendeiro possuía em sua conta na casa comissária. Nada impedia que esta emitisse a conta de venda em data posterior à data em que a transação fora de fato realizada. Tais práticas, cuja generalização é obviamente impossível de ser avaliada, eram, contudo, motivo de queixas por parte dos fazendeiros. Essa reação veio à tona, como se poderia esperar, nos momentos difíceis de superprodução e queda dos preços do café. Foi justamente nesses momentos que o mecanismo de comercialização e financiamento do café, baseado no comissário, com eçou a se mostrar inadequado para o empreendimento cafeeiro. É bem verdade que algumas tentativas de formação de um sistema de crédito agrícola haviam sido realizadas desde os tempos do Império. A necessidade de um sistema financeiro alternativo já era sentida bem antes, principalmente por grandes fazendeiros, interessados em realizar investimentos volumosos. A questão da mão-de-obra, entretanto, assumia uma gravidade de tal ordem, na segunda metade do século XIX, que absorvia atenção integral do capital cafeeiro. A introdução do trabalho livre nas fazendas paulistas desencadeou um mecanismo expansionista sem precedentes na lavoura e, como conseqüência, revelou-se mais claramente a insuficiência do sistema de financiamento baseado no comissário. Assim sendo, se, por um lado, recursos financeiros adicionais se tornaram necessários para o custeio das fazendas, de outro, a introdução do trabalho livre veio eliminar a necessidade de recursos anteriormente exigidos para a aquisição de escravos.

A QUESTÃO DA MÃO-DE-OBRA

A utilização em massa do trabalho assalariado representou a primeira fase de desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A formação do mercado de trabalho assalariado adquiriu um ritmo mais intenso no país depois da falência definitiva do sistema escravista. Na análise desse processo, salta à vista o fato de que, na região de desenvolvimento mais intenso (Sudeste), praticamente até a década de 1930, a mão-de-obra assalariada era recrutada preferencialmente entre os imigrantes, embora já houvesse, desde as últimas décadas do século XIX, um grande contingente potencial de trabalhadores assalariados constituído por brasileiros natos. Uma investigação parcial dos recursos de mão-de-obra, efetuada em 1882, demonstrou que de cerca de cinco milhões de pessoas na idade de 13 a 45 anos que viviam nas seis maiores províncias do país — Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Ceará —, 651 mil, u 13%, eram escravos. O número de pessoas livres que se dedicavam a qualquer trabalho era igual a 1,4 milhão, ou 29%. As demais, 2,9 milhões, ou 58% de toda a população apta ao trabalho, foram qualificadas como “indivíduos sem ocupação certa”. A abolição da escravatura em 1888 e uma série de cataclismas sociais e econômicos no último quartel daquele século — como a seca catastrófica no Nordeste em 1877-1879 ou a decadência dos cafezais outrora prósperos na província do Rio de Janeiro e a sua transformação em pastagens — resultaram no aumento do número de pessoas que não tinham fontes de rendimentos permanentes para sua subsistência e, muitas vezes, nem sequer domicílio. Foi precisamente nessa época que surgiram, no Rio de Janeiro e em algumas outras cidades do Brasil, as favelas. O que explicaria a necessidade de importação de imigrantes, apesar da existência de tanta mão-de-obra nativa desocupada? Durante 50 anos, de 1880 a 1930, chegaram ao país quatro milhões de imigrantes, a maior parte dos quais se estabeleceu em São Paulo, que era uma espécie de epicentro do desenvolvimento capitalista do país. No final do século XIX, os imigrantes constituíam cerca de metade da população adulta de São Paulo e mais de 10% da população adulta do país.

Ilustração: Imigrantes, Tarsila do Amaral.

Isso aconteceu, em primeiro lugar, porque milhões de habitantes locais pauperizados, sem ocupação certa, representaram por muito tempo um exército de trabalho sobretudo potencial e não real. O longo domínio do sistema escravista e de outros sistemas arcaicos, a exploração impiedosa e a opressão social que as camadas dos des-possuídos, tanto os escravos como os pobres livres, sofreram durante várias gerações mutilaram-nas moral, psicológica e fisicamente. Além disso, o primitivismo dos seus hábitos de trabalho, que se combinava freqüentemente com a deficiência física, assim como tradições e costumes que lhes foram inculcados, criavam sérios obstáculos à exploração capitalista da mão-de-obra nacional. Um tratamento ligeiramente diferente da questão imigratória é oferecido por Celso Furtado, que identifica outros problemas para a utilização da mão-de-obra nacional na grande lavoura cafeeira, somados à dificuldade de adaptação dos trabalhadores, principalmente da zona urbana, às condições de vida e trabalho nas grandes fazendas. Em primeiro lugar, o estoque de escravos existente no Brasil revelou-se insuficiente em face da contínua expansão da produção cafeeira. O tráfico interno de escravos direcionado para as plantações de café do sul, em prejuízo das regiões decadentes (como a região algodoeira do Maranhão), atingiu um ponto de esgotamento, provocando uma utilização ainda mais intensa — e, conseqüentemente, um desgaste maior — dessa mão-de-obra. Além disso, os trabalhadores pertencentes à economia de subsistência estavam extremamente dispersos, dificultando o recrutamento e exigindo uma significativa mobilização de recursos. Tal empreitada, no entanto, demandaria ampla cooperação por parte dos proprietários das terras em que se encontravam esses trabalhadores, algo pouco factível, pois o prestígio e o poder político do senhor de terras dependiam, em grande medida, “da quantidade de homens que pudesse utilizar a qualquer momento e para qualquer fim”. Os fazendeiros de café de São Paulo e os industriais principiantes do Rio de Janeiro e de São Paulo, durante muito tempo, preferiam admitir operários imigrantes que já haviam “cursado uma escola de trabalho assalariado”, habituados a mais disciplina e autonomia, embora seus salários fossem mais elevados. Ao mesmo tempo, o governo federal e as administrações locais dos estados do Sudeste, principalmente São Paulo, continuavam a gastar importantes somas para subsidiar a imigração, apesar da intensificação do superpovoamento agrário. As primeiras restrições à imigração, ainda tímidas, como a proibição do ingresso de pessoas doentes e idosas, foram introduzidas no país em 1921. Depois de 1930, com o agravamento do problema do emprego, devido, entre outras razões, ao crescimento da oferta de mão-de-obra no mercado nacional, restrições mais sérias foram impostas. De modo geral, até a década de 1930, a reserva de mão-de-obra composta de brasileiros nativos era utilizada relativamente pouco e de preferência nos ramos em que prevaleciam relações de produção tradicionais. Via de regra, as condições de contratação de mão-de-obra nacional eram consideravelmente piores. Segundo Roberto Simonsen, em 1938, 50 anos depois da abolição da escravatura, o salário de um trabalhador de muitas zonas do Norte e do Nordeste do Brasil era inferior aos gastos com a manutenção de um escravo nos últimos anos do Império. “Por condições econômicas ainda mal estudadas, o trabalhador livre, em vastas zonas do país, não ganha o suficiente para se alimentar: é um subalimentado executando miseravelmente o pouco trabalho de que é capaz, a troco do simples direito de viver”. Tudo isso permite afirmar que a libertação dos escravos não os transformou em operários assalariados, como supõem alguns, mas apenas criou possibilidades para isso. Tornar-se-iam proletários apenas filhos e netos dos antigos escravos, cujos pais e avós tiveram de passar pela severa escola da adaptação ao novo modo capitalista de produção. O baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas e do próprio produtor imediato, no entanto, não foram as únicas causas do desenvolvimento atrasado e lento do mercado de trabalho assalariado. A concentração das terras mais férteis e melhor situadas em latifúndios foi um importante obstáculo à transformação da maior parte das pessoas livres em proprietários de terra. Apesar disso, muitas tiveram acesso ao meio de produção básico, estabelecendo-se em terras alheias como arrendatários. Além disso, o monopólio da grande propriedade de terra no Brasil jamais teve um caráter absoluto. Na periferia e dentro das principais zonas de produção agrícola existiam grandes maciços de terras que não pertenciam a ninguém ou tinham sido abandonados, o que abria à população indigente livre, que crescia cada vez mais, possibilidades de obter meios de subsistência. Portanto, embora a maioria das pessoas livres não possuísse os meios de produção, não estava destituída totalmente dos meios de existência, o que deu condições para transformar uma parte da população rural indigente em camponesa. Esses processos tornaram-se especialmente intensos após a derrocada do sistema escravista e resultaram na formação de dois sistemas econômicos: um de economias “semifeudais” e de pequenas economias camponesas, que concorriam na utilização do excesso de mão-de-obra com o outro sistema, verdadeiramente capitalista.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

LACERDA, Antônio Corrêa de … [et al.]; Economia brasileira / organizadores José Márcio Rego, Rosa Maria Marques; colaboração especial Rodrigo Antônio Moreno Serra. — 4.ed. — São Paulo : Saraiva, 2010.

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